2. Revisão
De acordo com McNeal (1992), a importância da criança como consumidora começa a
crescer a partir da década de 50. Isso decorre do fenômeno do Baby Boom, que expandiu o
número de crianças em 50% nos Estados Unidos. Outro fator fundamental foi a afluência
econômica experimentada pelos norte-americanos, transferindo o poder aquisitivo dos adultos
para os adolescentes e posteriormente para as crianças (MCNEAL, 1969).
Desde o fim da década de 60 McNeal (1969) trabalhou o segmento infantil,
desenvolvendo esforços para descrevê-lo adequadamente. Eles ajudaram a sociedade como
um todo a entender o papel que a criança desempenhava na sociedade de consumo crescente
nos EUA. Já no final da década de 70, McNeal (1979) fez uma revisão do papel da criança na
sociedade como consumidora. O autor destaca as controvérsias que começam a surgir,
questionando se a criança realmente deveria ser considerada uma consumidora e se a
sociedade não seria responsável pela proteção das crianças frente às ações de marketing.
Roedder-John (1999) enfatiza que essa controvérsia, liderada por grupos ativistas norteamericanos, gerou um maior interesse no tema por parte dos acadêmicos e dos profissionais
de marketing.
Como resultado desses esforços, Ward (1974) aborda a questão sob uma perspectiva
até então não levada em consideração, a da socialização da criança como consumidora.
Segundo o autor, este caso especifico de socialização abarca a fase que as crianças adquirem
habilidades, conhecimento e atitudes relevantes para o seu funcionamento efetivo como
consumidores. A discussão sobre essa abordagem psico-sociológica será aprofundada a
seguir.
Socialização do consumidor
Ao versar sobre a criança inserida em uma sociedade, participando e interagindo com
o ambiente, deve-se analisar cuidadosamente a ação continuada que transforma o ser humano
em um ser social. O processo de adaptar o indivíduo ao grupo social e, mais especificamente,
uma criança à vida em comunidade nomeia-se socialização (HOUAISS, 2002). López (1995,
p. 83) agrega declarando que “se a criança vincula-se afetivamente a determinados adultos, se
adquire o conhecimento do que a sociedade é e o que esta espera dela, e se tem um
comportamento adequado a estas expectativas, estará bem socializada”. Este trabalho, a partir
de seus objetivos, foca na socialização das crianças como consumidora.
Como levantado anteriormente, Ward lança, na década de 70, a pedra fundamental
para os trabalhos acadêmicos voltados para o tema. Cerca de 30 anos depois, Roedder-John
(1999) busca a convergência dos estudos acerca da socialização do consumidor, tomando
emprestado da psicologia o fundamento teórico, construindo por meio de um processo de
dedução racional um instrumento concreto que servisse como pilar para o prosseguimento dos
estudos na academia. Em seu artigo, a autora destaca que o ser humano enfrenta desde seu
nascimento um período de desenvolvimento cognitivo e aprendizagem ou amadurecimento
social. Ainda, aponta que ao longo dos anos a criança adquire habilidades de pensar mais
abstratamente sobre o ambiente que a cerca, obtém informações, aprende a processá-las e
compreende as relações interpessoais mais profundamente.
Teorias de Desenvolvimento da Criança: Desenvolvimento Cognitivo e Aprendizado
Social
A literatura psicológica divide a questão da socialização da criança em duas frentes
teóricas: a escola do Desenvolvimento Cognitivo e a escola da Aprendizagem Social.
Enquanto uma criança evolui cognitivamente, ela interage gradativamente com o ambiente,
desenvolvendo a exteriorização do individuo e criando de mapas cognitivos e esquemas, ou
seja, ela aprende como a sociedade está estruturada e o que se espera dela em cada ambiente
de convivência. A seguir, serão apresentados os principais conceitos relacionados a cada uma
das escolas e, posteriormente, trabalhos que tentam conciliá-las.
Escola do Desenvolvimento Cognitivo. O trabalho mais reconhecido em se tratando
de desenvolvimento cognitivo da criança é a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget
(1959). O francês propõe três estágios básicos no desenvolvimento cognitivo: o sensóriomotor, o de inteligência representativa (subdividido em pré-operacional e concretooperacional) e o operacional formal.
O primeiro período avança até aproximadamente 1,5 a 2 anos e passa primeiramente
por uma fase de centralização do próprio corpo seguida por uma de objetivação e
especialização de esquemas da inteligência prática. A criança desenvolve até os dois anos o
pensamento simbólico, mas ainda esta mais preocupada com as propriedades perceptíveis dos
estímulos (PIAGET, 1959).
Montigneaux corrobora com a teoria de Piaget afirmando que os primeiros anos de
vida de uma criança constituem um período dominado “pelo seu egocentrismo, isto é, a
impossibilidade de considerar e levar em conta o mundo lá fora, para além dela própria, e de
uma maneira objetiva” (MONTIGNEAUX, 2003, p. 34). Desta forma, crianças dessa idade
não diferenciam produtos adequadamente, com menos intensidade ainda conseguem
distinguir marcas e muito raramente comunicar seus desejos, primeiro por incapacidade
lingüística e segundo por desinteresse na interação com outros indivíduos.
O segundo período de desenvolvimento cognitivo prossegue até os 7 ou 8 anos e
envolve a evolução das funções direcionais e identidades qualitativas e o inicio dos
agrupamentos operacionais nas suas diversas formas concretas e tipos de conversação
(CARMICHAEL, 1975). Em sua primeira fase, por volta dos 4 ou 5 anos, a criança ainda é
incapaz de partilhar e assumir compromissos (MONTIGNEAUX, 2003). É somente a partir
dessa idade que ela começa a interagir de forma mais significativa com aqueles a sua volta.
Esses infantes são claramente egoístas e seu comportamento é caracterizado pela
centralização, tendendo a perceber apenas uma dimensão do objeto por oportunidade.
Em contraste com a etapa anterior, o jovem consegue gradativamente avaliar diversas
dimensões de estímulos ao mesmo tempo e relacionar as dimensões de uma forma inteligente
e relativamente mais abstrata. Neste contexto, espera-se que a existência de um grande
número de elementos visuais de forma simultânea confunda a criança.
Por fim, o individuo inicia a etapa das operações proposionais, dividida na fase de
organização e na de aquisição da combinatória geral. A partir desse momento as crianças
progridem para um padrão mais maduro, capaz de raciocínios ainda mais complexos acerca
de situações e objetos concretos e hipotéticos (CARMICHAEL, 1975).
Segundo Roedder-John (1999), a capacidade de processar informações também é um
indicativo do desenvolvimento da criança e serve como uma forma de segmentar o público
infantil nas seguintes categorias: processadores estratégicos (acima dos 12 anos),
processadores indicativos (7 aos 11 anos) e processadores limitados (abaixo dos 7 anos).
Ainda, para a autora a habilidade para processar a informação é um indicador bastante
importante das capacidades da criança como consumidor.
Na década de 70, o precursor da teoria da socialização do consumidor analisou
empiricamente a problemática do processamento de informações pelos indivíduos. Os
achados de Ward (1974) confirmam as expectativas e apontam que os petizes analisam as
informações de forma diferente se comparada à adultos e que, como observado, elas
processam mais informações à medida que envelhecem, da mesma forma com que crianças
mais velhas avaliam as marcas em mais dimensões que as mais novas.
Escola do Aprendizado Social. O aprendizado social cinge uma variedade de tópicos,
como desenvolvimento moral, desenvolvimento altruísta, formação de impressões, e
formulação de perspectiva social, sendo as ultimas duas as mais importantes o presente
trabalho.
O trabalho mais respeitado na formulação de perspectiva social foi exposto por
Selman (1980) que propõe uma descrição de como as habilidades das crianças de entender as
diferentes perspectivas evoluem no tempo.
A primeira fase da vida social, entre os 3 e 6 anos, a criança não percebe nenhuma
outra perspectiva a não ser a própria. À medida que avançam no segundo estágio (6 a 8 anos),
elas evidenciam que outras pessoas podem ter outros motivos e opiniões, mas acreditam isso
ser proveniente da falta ou falha de informações por parte dos terceiros envolvidos.
Continuando, entre os 8 e 10 anos de idade o individuo passa a considerar outros pontos de
vista. Já entre os 10 e 12 anos, o cidadão desenvolve a capacidade de conectar diferentes
opiniões e pessoas em uma mesma perspectiva. Contudo, apenas no ultimo estágio, entre os
12 e 15 anos, a criança pondera outros pontos de vista e observa a forma com que se relaciona
com o grupo social.
Estágios do desenvolvimento social e cognitivo da criança. Tomando por base os
trabalhos mais representativos da teoria psicológica e social Roedder-John (1999) propôs um
modelo conceitual conciliador e que segmenta a socialização do consumidor em três
categorias básicas:
Estágio perceptual – Esse estágio e caracterizado por uma orientação geral da
criança para as características observáveis mais imediatas no ponto de venda. O conhecimento
de consumo das crianças nessa faixa etária é baseada geralmente em uma única dimensão e
representada pelas suas próprias observações. Elas apresentam familiaridade com os conceitos
relacionados ao ato da compra, como por exemplo a marca, mas dificilmente têm algum
conhecimento aprofundado. A orientação é basicamente simples, limitada e egocêntrica.
Estágio analítico – Mudanças severas tanto no campo cognitivo quanto no social
caracterizam essa fase. Algumas das principais evoluções em termos de desenvolvimento de
conhecimento e habilidades como consumidor acontecem nesse período. A alteração de um
pensamento baseado na percepção convertido para um pensamento marcadamente baseado
em simbologias, como exposto por Piaget, e o aumento do processamento de informações
engendram em um melhor entendimento do mercado e do ponto de venda. Conceitos como
ponto de venda ou preço já passam a ser assimilados, assim como a diferenciação de produtos
e marcas em um nível mais abstrato. Essa tendência tem influência também no modo com que
o jovem discute e negocia os itens desejados - tomando decisões e argumentando com base
em complexas análises multidimensionais.
Estágio reflexivo – As mudanças nesse estágio são mais uma questão de intensidade
e profundidade que de estrutura. O individuo nessa fase mantém as características básicas
descritas no item anterior, embora as apresente de forma muito mais complexa, abstrata e com
mais nuances. Brëe (1995) aponta que os agentes que interagem diretamente no processo de
socialização do consumidor. Cada uma das etapas apresentadas por Roedder-John (1999) são
impactadas pelos fatores expostos.
Tendo em mente os conceitos expostos por Brëe (1995) em seu célebre estudo é
possível afirmar que a socialização do consumidor está relacionada com o conhecimento dos
conceitos (p.e.: dinheiro, troca), com as instituições envolvidas (p.e.: empresas varejistas) e
com o aprendizado de como se dá o consumo (p.e.; compra, venda, satisfação). Brëe (1995)
apresenta de forma bastante didática o processo de socialização do consumidor, tentando, à
semelhança de Roedder-John (1999), incorporar em um mesmo modelo as escolas de
Desenvolvimento Cognitivo e Aprendizado Social.
No Quadro 1 apresenta-se a categorização criada por McNeal (1992) para melhor
compreender o desenvolvimento da criança como consumidora. Nesse quadro são
identificadas as características centrais do comportamento de acordo com a faixa etária. Essa
categorização é interessante para melhor compreender a forma como a criança interage com o
ambiente do varejo e família no momento da compra.
Percebe-se no Quadro 1, que o autor busca analisar as diferentes etapas de
desenvolvimento da criança como consumidora em relação ao seu nível de dependência dos
pais. O desenvolvimento da criança acontece de acordo com a sua capacidade de tomar
decisões e realizar compras de forma autônoma. Esse processo de aprendizado é
fundamentado nas experiências vividas com os pais. A influência dos pais nas primeiras
impressões em relação ao consumo é significativa, visto que são eles que escolhem os
estabelecimentos que a criança irá conhecer e os produtos que ela presenciará sendo
comprados. Esse processo de aprendizado faz com que a criança, por volta dos 10 anos, já
possa fornecer descrições detalhadas de lojas, produtos, propagandas, embalagens etc. Como
pode ser visto o processo de aprendizado não é algo fácil nem programado, é uma série de
erros e acertos que acontecem ao longo da infância da criança (MCNEAL, 1992).
A classificação de McNeal (1992) exclui crianças menores de um ano de idade. Isso
pode ser explicado pelo fato de que o sistema visual da criança se desenvolve de forma
significativa apenas entre os 6 e 12 meses de idade (MONTIGNEAUX, 2003). Antes deste
período, não faz sentido analisar o comportamento do jovem em um ambiente varejista, visto
que ele nem ao menos tem a capacidade de reconhecer os pais, quanto mais um
estabelecimento, produto ou marca.
Por fim, McNeal (1992) aborda o caráter multidimensional do papel da criança como
consumidora, dividindo a atuação da criança como consumidora em três mercados: Mercado
Primário, Mercado de Influencia e Mercado Futuro. Estes mercados são apresentados em
maior profundidade no Quadro 2. Essa visão tridimensional indica a extensão da importância
que a criança pode ter nos negócios de uma empresa. Essa divisão, em conjunção com as
etapas do desenvolvimento cognitivo e social, pode ser amplamente utilizada para melhor
compreender a forma e os meios que devem ser utilizados para atingir esse público-alvo.
Essa visão tridimensional indica a extensão da importância que a criança pode ter nos
negócios de uma empresa. Essa divisão, em conjunção com as etapas do desenvolvimento
cognitivo e social, pode ser amplamente utilizada para melhor compreender a forma e os
meios que devem ser utilizados para atingir esse público alvo.
A socialização do consumidor não se dá, no entanto, de forma independente, no vácuo.
Conforme apresentado por Brëe (1995) na Erro! Fonte de referência não encontrada.,
existem diversos agentes que impactam o estágio de socialização do consumidor. A teoria
enfatiza a importância dos agentes socializadores no processo de adequação do individuo ao
papel social (MCNEAL, 1992; MOSCHIS e MOORE, 1979), destacando-se o papel da
família, da escola, amigos e da mídia de massa nesse processo (WHITE, 1997). Coutheux e
Umeda (2004) realçam o fenômeno de urbanização nas grandes capitais como um fator que
diminui o impacto dos amigos da socialização, mas ao mesmo tempo identificam que a mídia
ganha espaço neste segmento infantil que passa cada vez mais tempo no domicilio. Apesar
dos avanços conquistados no entendimento desse processo, Roedder-John (1999, p.205)
assinala que “continuamos a encontrar lacunas significantes em nossa conceitualização e
compreensão de exatamente qual o papel do ambiente social e experiências na socialização
dos consumidores”. 7
Aproveitando essa lacuna acadêmica, Page e Ridgway (2001) desenvolveram um
estudo analisando o impacto do ambiente no padrão de consumo das crianças de origens
socioeconômicas díspares. Os autores indicam que não são as diferenças no aprendizado que
geram o nível de socialização da criança como consumidora, mas sim o ambiente onde se dá
esse aprendizado. Dessa forma, destacam que o ambiente de varejo em que o infante tem suas
primeiras experiências é fundamental no seu processo de socialização. Como ambiente
entende-se características como o tamanho, o tipo e o ambiente da loja, entre outras
características que podem caracterizar um ambiente de varejo. Os resultados encontrados
apontam para grandes diferenças no nível de socialização de crianças da alta e da baixa renda
em razão do tipo de loja freqüentado pela família. Esse trabalho foi realizado com crianças de
11 e 12 anos, por meio de entrevistas. Page e Ridgway (2001) consideram recomendável a
extensão desse trabalho para outras faixas etárias, utilizando-se métodos menos intrusivos.
A existência de disparidades no comportamento e no nível de interação com o mundo
externo de acordo com faixas etárias é notória (PIAGET, 1959; CARMICHAEL, 1975;
MONTIGNEAUX, 2003; MCNEAL, 1992 e ROEDDER-JOHN, 1999), indicando a
necessidade de conduzir pesquisas que visem identificar as diferenças de comportamento que
existem para cada faixa etária dentro de determinado contexto. A discussão exposta leva a
uma importante questão - “Existe uma diferença da idade da criança em seu comportamento
durante a interação no ambiente de compra?”.
Para o desenvolvimento deste estudo não podem, entretanto, ser ignoradas as
conclusões de Page e Ridgway (2001), que destacam a variação do comportamento entre
crianças oriundas de ambientes socioeconômicos diferentes. Isso conduz a uma reespecificação do problema de pesquisa, envolvendo a opção pelo mercado de alta renda
(classes A e B) ou pelo mercado de baixa renda (classes C, D e E).
Alguns fatos ressaltam a importância da escolha da base da pirâmide como objeto de
estudo deste artigo. Primeiro, o fato de as empresas multinacionais terem passado décadas
explorando os segmentos formados por consumidores das classes A e B (HART e
PRAHALAD, 2002) gerou um mercado saturado que impede o continuo crescimento das
empresas no esforço de atender as expectativas dos acionistas (HART, 2005). Dessa forma
surge a necessidade de abordar o mercado composto pelas classes C, D e E. Essa mudança
estratégica nas ações das empresas indica a necessidade de um esforço de pesquisa acadêmico
direcionado para este foco.
Continuando, a importância econômica deste segmento de mercado é significativa,
correspondendo a 4 bilhões de pessoas, que apesar de apresentar um baixo poder de compra
individual, seu conjunto representa um mercado significativo (Hart e Prahalad, 2002).
Por fim, Prahalad e Lieberthal (2003) indicam a Índia, China e Brasil como os paises
onde o mercado da Base da Pirâmide (como é comumente conhecido o segmento de baixa
renda, devido à posição na pirâmide Poder de Compra per capita X População) seria mais
significativo, representando assim uma oportunidade para as empresas.
Diante do apresentado surgem questões importantes, que serão mais profundamente
abordadas na pesquisa de campo: (1) As crianças apresentam diferenças de comportamento no ambiente varejista de acordo com a faixa etária? (2) Qual é o comportamento exibido por
crianças de diferentes faixas etárias no ambiente de varejo?
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